Maior fortaleza do tráfico, Rocinha é ‘blindada’ com 1.500 fuzis, arsenal até sete vezes superior ao de um batalhão operacional da PM

Maior fortaleza do tráfico, Rocinha é ‘blindada’ com 1.500 fuzis, arsenal até sete vezes superior ao de um batalhão operacional da PM

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Na Zona Sul do Rio, entre os bairros da Gávea e de São Conrado, fica a maior favela do Brasil, a Rocinha. Naquela encosta, diante do mar, de acordo com dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), vivem 72 mil pessoas — uma população refém hoje do Comando Vermelho. Após sucessivas disputas, a facção rival Amigos dos Amigos (ADA) — que por anos controlou o morro — sucumbiu ao poderio do inimigo. Foram oito anos de guerra até a comunidade se tornar o maior bunker do CV no estado, com nada menos que 1.500 fuzis nas mãos dos traficantes, segundo estimativas de integrantes da cúpula da Segurança Pública do estado. O arsenal é até sete vezes maior do que o número de armas disponíveis em um batalhão operacional da Polícia Militar.

Uma amostra desse paiol à disposição do tráfico foi registrada no mês passado por um drone da Polícia Militar, que capturou imagens da fuga em massa de bandidos por uma área de mata durante uma operação. Investigadores estimam que a câmera, com capacidade para filmar à noite, conseguiu flagrar cerca de 400 homens, a maioria com fuzil. Ao se tornar uma fortaleza, a favela tem sido procurada para ser o home office de bandidos de outros estados, assim como refúgio para estelionatários e assaltantes. Ou seja, criminosos buscam cada vez mais territórios protegidos por forte armamento de guerra, como mostra a segunda reportagem da série “Gatilho da violência”.

Atacadistas do crime

Nesse cenário, o número de fuzis em uma comunidade é uma das principais demonstrações do poder da quadrilha para manter seu território inexpugnável — tanto diante de confrontos com a polícia quanto de disputas com facções rivais. Em quase cinco décadas — os primeiros fuzis apareceram nas mãos de bandidos no fim dos anos 70 e no início dos 80 —, o tráfico de armas se tornou fundamental para garantir os “negócios” do crime organizado, deixando de ser uma operação no varejo para atuar no atacado, segundo o delegado da Polícia Civil Pedro Cassundé:

— Aqueles chefes tradicionais, que numa configuração clássica atuavam importando apenas armas para abastecer seu próprio território, acabaram. Hoje, devido ao capital acumulado, eles passaram a atuar também como atacadistas. Eles aproveitam o contato estabelecido com os fornecedores para adquirir, em larga escala, armas e drogas e revender esse material a qualquer criminoso disposto a pagar o valor cobrado. Assim, ganham o status de “matutos”.

Traficantes na Maré recebem treinamento de táticas de guerra — Foto: Reprodução/TV Globo
Traficantes na Maré recebem treinamento de táticas de guerra — Foto: Reprodução/TV Globo

Essa dinâmica de mercado já foi comprovada pela polícia por meio de investigações que tiveram acesso a trocas de mensagens após quebras de sigilos telefônico e telemático. Uma conversa obtida pela Polícia Civil mostra Eduardo Fernandes de Oliveira, conhecido como Eduardo 2D, negociando a venda de armas e munição para fuzis com outro traficante. Na mensagem, ele informa que 500 caixas de projétil calibre 7,62 custam R$ 75 mil; um fuzil AR-556, R$ 51 mil; e 48 caixas de determinada munição calibre 7,62, R$ 31,2 mil. A compra total, que incluiu outros itens, ultrapassou R$ 300 mil.

Alemão, outra cidadela

Eduardo 2D é apontado como o “02” do Complexo do Alemão, outra cidadela do Comando Vermelho extremamente protegida por fuzis. Também integrante da cúpula da facção, Fhillip Gregório da Silva, o Professor, que foi morto no mês passado, era considerado importante “matuto”, com contatos no Paraguai, no Peru, na Bolívia e na Colômbia. Agora, Manoel Cinquine Pereira, o Paulista, entrou na mira da polícia como substituto de Professor na logística internacional do tráfico de armas.

Coordenadora do Grupo de Atuação Especializada no Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do Estado do Rio (MPRJ), a promotora Letícia Emile reforça que esse universo criminoso mais bélico não costuma ter clientes exclusivos:

— Eles vendem para quem estiver disposto a pagar: tráfico, milícia, contravenção. Essas armas ilegais passam por vários bandidos e só deixam de ser usadas quando não funcionam mais. Afinal, um fuzil hoje tem altíssimo valor, e não apenas financeiro, mas também simbólico. Seu poder de intimidação, especialmente dentro de comunidades ou nas mãos de criminosos nas ruas, é imenso.

O nutricionista Thiago Monteiro Vieira, de 39 anos, sabe bem o quanto um fuzil é intimidador, para dizer o mínimo. Ele foi assaltado na porta de casa, no Condomínio Alphaville, na Barra da Tijuca, onde ia buscar o filho, na época com 2 anos. A possibilidade de estar com a criança no momento do crime o atormentou por meses a ponto de ter que tomar medicação para controlar crises de ansiedade e pânico, além de fazer sessões de terapia.

— Um carro me cortou e parou na minha frente. Um homem desceu já com um fuzil em punho, mandando que eu saísse do veículo. Em seguida, outro homem apareceu com uma pistola. Levaram meu carro, a carteira, o celular, tudo que eu tinha naquele momento — contou ele.

Por toda parte. Policial militar patrulha a Linha Amarela, via expressa que ligar a Ilha do Fundão à Barra, com fuzil em punho — Foto: Márcia Foletto
Por toda parte. Policial militar patrulha a Linha Amarela, via expressa que ligar a Ilha do Fundão à Barra, com fuzil em punho — Foto: Márcia Foletto

A arma usada para assaltar Vieira é empregada para impor medo seja nos confrontos em favelas, nas invasões a territórios inimigos ou em assaltos. A Coordenadoria de Fiscalização de Armas e Explosivos (CFAE) da Polícia Civil produziu um relatório sobre os 725 fuzis apreendidos no Estado do Rio no ano passado — uma média de dois por dia — e concluiu que mais da metade deles são cópias de modelos americanos, chamados de “copyfake”. E, apesar de não serem fabricados por empresas licenciadas, têm o mesmo poder de destruição de um fuzil original. Em muitos casos, são montados com peças produzidas em empresas informais. Há também exemplares feitos com partes de armas de airsoft ou de armas antigas canibalizadas, custando até metade do valor de um fuzil importado ilegalmente — que vai de R$ 50 mil a R$ 70 mil.

Sem considerar os modelos montados, 60% dos fuzis apreendidos são de origem americana. Depois dos Estados Unidos, os países com maior número de armas encontradas com bandidos do Rio no ano passado foram República Tcheca, Brasil, Alemanha e Romênia. A maioria vem do Paraguai e, depois de cruzar a fronteira, segue por estradas para Rio e São Paulo.

O mercado legal

Autoridades e especialistas não arriscam calcular o número de armas ilegais que estão em circulação no Rio. Dados da Polícia Federal mostram que há mais de 115 mil armas (de todos os tipos) legalizadas no estado. No fim do ano passado, havia mais armas licenciadas por cidadãos (40.864) do que por órgãos públicos — aqui estão as polícias —, que somavam 40.331 registros ativos.

E esses dados não incluem os registros de CACs (colecionadores, atiradores e caçadores), que até recentemente estavam sob responsabilidade do Exército e tiveram o acesso facilitado a armas de calibre restrito durante o governo de Jair Bolsonaro. Um levantamento feito por Roberto Uchôa, membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com base no recadastramento determinado pelo governo Lula, mostra que, de maio de 2019 a dezembro de 2022, foram comprados no mercado interno brasileiro 30.895 fuzis por CACs.

— O quadro de origem das armas mudou em 2019 com o governo Bolsonaro, porque foi a primeira vez que pessoas da sociedade civil puderam comprar armas como essas no mercado interno. Antes, o acesso era possível apenas por meio de mercado estrangeiro ou desvio de arsenais públicos. Com as brechas na fiscalização, passou a ser possível obter essas armas sem o risco de apreensão em rodovias ou aeroportos — explica Uchôa.

Policiais da Força Nacional, convocados para conter a violência no Rio em 2007, em ação no Alemão<EP,1> — Foto: Marcelo Carnaval/15-06-2007
Policiais da Força Nacional, convocados para conter a violência no Rio em 2007, em ação no Alemão&lt;EP,1&gt; — Foto: Marcelo Carnaval/15-06-2007

Além da própria circulação de armas de longo alcance legais, Bruno Langeani, consultor sênior do Instituto Sou da Paz, ressalta que as mudanças na legislação naquele período se tornaram ainda mais preocupantes devido à liberação da quantidade de munição permitida aos CACs.

— De um dia para o outro, entre 150 mil e 200 mil CPFs passaram a poder comprar grandes quantidades de munição não rastreada, inclusive de fuzil. Uma pessoa que tivesse uma arma dessas podia adquirir até mil projéteis por ano. Se tivesse 30 fuzis, poderia comprar 30 mil balas por ano. Isso gerou um volume altíssimo de venda de munição no Brasil, e até hoje não se vê uma estratégia clara para lidar com essa questão — afirma.

Além da própria circulação de armas de longo alcance legais, Bruno Langeani, consultor sênior do Instituto Sou da Paz, ressalta que as mudanças na legislação naquele período se tornaram ainda mais preocupantes devido à liberação da quantidade de munição permitida aos CACs.

— De um dia para o outro, entre 150 mil e 200 mil CPFs passaram a poder comprar grandes quantidades de munição não rastreada, inclusive de fuzil. Uma pessoa que tivesse uma arma dessas podia adquirir até mil projéteis por ano. Se tivesse 30 fuzis, poderia comprar 30 mil balas por ano. Isso gerou um volume altíssimo de venda de munição no Brasil, e até hoje não se vê uma estratégia clara para lidar com essa questão — afirma.

O governador Cláudio Castro apresenta um dos 500 fuzis comprados pelo estado em 2023<EP,1> — Foto: Márcia Foletto/07-07-2023
O governador Cláudio Castro apresenta um dos 500 fuzis comprados pelo estado em 2023&lt;EP,1&gt; — Foto: Márcia Foletto/07-07-2023

Em 2023, um decreto do governo federal alterou a lei e definiu que apenas quatro armas de uso restrito são permitidas ao nível mais alto dos CACs, mas que continuam autorizados a comprar equipamentos para recarga de munição — outro motivo de preocupação. No ano passado, o Exército emitiu pelo menos 1.280 autorizações para compra de equipamentos para municiar cartuchos vazios no país. Além disso, foram concedidas 40 autorizações para entidades de tiro com a mesma finalidade.

Nesse mesmo período, foram registrados 55 desvios de armas de fogo pertencentes a CACs no Estado do Rio: 32 casos de roubo, 15 de furto e oito de extravio.

Fonte: O Globo

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