A ata de uma reunião de 2 de dezembro de 2022 da Americanas revela que a empresa planejava cortar pelo menos R$ 1 bilhão em investimentos previstos para 2023 antes mesmo de explodir a crise da empresa, em janeiro. Ela traz termos duros, como “não podemos ter a queima de caixa que estamos tendo” e “gastamos todo o dinheiro e temos de ir à guerra”. E diz que a empresa achava que a redução de pelo menos R$ 1 bilhão devia ser feita de “forma inteligente”.
O texto mostra que o economista Sérgio Rial tinha conhecimento de que a Americanas passavam por dificuldades financeiras e, segundo o Estadão apurou, mandou que elas constassem da ata um mês antes que o fato relevante do dia 11 de janeiro de 2023 fosse divulgado, admitindo um rombo de cerca de R$ 20 bilhões em razão de “inconsistências contábeis”.
A existência do documento interno de cinco páginas, do qual esta coluna obteve uma cópia, foi relevada pelo Metrópoles. Ele relata a reunião para o planejamento de 2023 da empresa e tem no alto a inscrição “reservada”. Participaram dela Rial, o diretor financeiro André Covre, além dos diretores Anna Saicali, Marcio Cruz, Timótheo Barros, João Guerra e Vanessa Carvalho, que secretariou o encontro.
São três os trechos que as pessoas envolvidas com a investigação do caso alegam ser preciso esclarecer o significado. O primeiro é uma advertência, no segundo parágrafo: “Não podemos ter a queima de caixa que estamos tendo.” O segundo trecho está no quarto parágrafo. “Importante levarmos em consideração o asset (ativo) da empresa achado, fizemos um follow on (venda de ações) espetacular no momento certo (2020), mas gastamos todo o dinheiro. Agora precisamos de dinheiro e temos de ir à ‘guerra’.”
No final do documento, o terceiro trecho que merece atenção, segundo os investigadores, é o que registra que o capex (as despesas com capital) da empresa precisavam ser reduzidas “pelo menos em R$ 1 bilhão de forma inteligente” em relação aos investimentos previstos em 2023.
Procurado, Rial afirmou por meio de sua assessoria que “a reunião de 02 de dezembro de 2022, realizada com a presença do futuro CFO André Covre, teve por agenda apresentá-lo aos demais diretores e discutir, dentre outros temas específicos, o orçamento de 2023, conforme provas telemáticas existentes”. “Contudo, não foram apresentadas nessa reunião as projeções do quarto trimestre sob a alegação de que o Natal teria grande impacto ainda nas vendas.” Por fim, reafirmou que não tomou “conhecimento de qualquer situação de crise financeira na Americanas envolvendo as inconsistências contábeis antes de assumir o cargo de CEO”.
A coluna também procurou a Lojas Americanas para que ela se manifestasse sobre a ata da reunião de dezembro, mas até este momento não obteve resposta. O ex-CFO André Covre não foi localizado, assim como Miguel Gutierrez, que antecedeu Rial no comando da Americanas por 20 anos.
Guerra de versões sobre o que aconteceu e sobre os responsáveis
Há uma guerra de versões sobre o que aconteceu na Americanas e sobre quem são os responsáveis pela fraude. Bancos que têm bilhões de reais a receber da empresa contrataram exércitos de advogados e contadores para revisar documentos internos e ler a troca de e-mails de ex-executivos da Americanas em busca de pistas.
Rial é um dos nomes chave para entender o que se passou na empresa. Ex-presidente do Banco Santander por quase sete anos, foi convidado a presidir a Americanas por Carlos Alberto Sicupira, um dos principais acionistas da companhia, em meados de 2022.
No dia 19 de agosto, a Americanas anunciaram a mudança da direção. Rial só assumiu a presidência da Americanas em janeiro de 2023, mas atuou como consultor da empresa no segundo semestre de 2022, para conhecer por dentro a empresa. Para tanto, recebeu R$ 600 mil. Daí a razão de ele participar da reunião com integrantes da antiga diretoria da Americanas antes de assumir a empresa.
É desse período o documento em que ele aparece falando que a Americanas estava “queimando caixa” e precisava cortar R$ 1 bilhão em investimentos. Há dez dias, Rial compareceu à CPI das Americanas, na Câmara dos Deputados, e foi questionado se sabia da fraude ou se algum dos principais acionistas tinha conhecimento do esquema. Rial negou. Disse que não viu indícios de que o trio de acionistas Carlos Alberto Sicupira, Jorge Paulo Lemann e Marcel Telles tivessem conhecimento da fraude. E que ele só soube do rombo em janeiro de 2023.
Rial tomou posse em 2 de janeiro, no lugar de Miguel Gutierrez. Trouxe a questão a público no dia 11 e renunciou ao cargo. “Eu assumo no dia 2 (janeiro) e a primeira pergunta que faço é perguntar como é que foi o Natal, como foi o mês. E a sinalização foi ruim, o quarto trimestre não foi o que a gente esperava. No dia 4, recebi a informação de que o número que vi antes, de R$ 15,9 bilhões, era dívida bancária não reportada. Levo um soco no estômago: a empresa tinha um patrimônio líquido de R$ 16 bilhões e uma dívida de R$ 36 bilhões. A dívida estava no balanço em posição equivocada”, afirmou aos deputados.
O que o documento que vem a público agora revela é que o executivo já sabia que a Americanas estava enfrentando alguma dificuldade financeira. A questão é definir a extensão desse conhecimento e se as regras de governança foram obedecidas pelos diversos atores envolvidos no caso.
No terceiro trimestre de 2023, a companhia havia anunciado um prejuízo de R$ 212 milhões. A inconsistência do capex planejado pode ser um indicativo de que, apesar do resultado do 3.º trimestre, a direção da Americanas pretendia até a reunião de 2 de dezembro manter o mesmo nível de gastos de capital previstos para 2023, antes mesmo de ter os resultados do 4.º trimestre? Essa é uma das perguntas que os envolvidos na investigação do caso se fazem.
O documento de 2 de dezembro admitia ainda que talvez fosse “necessário interromper de forma inteligente alguns projetos”. Pessoas ligadas à investigação do caso ouvidas pela coluna afirmam ser aqui também preciso verificar o real significado da ata para impedir o anacronismo de se interpretar o que está escrito segundo o conhecimento que hoje se tem da fraude contábil na empresa. Mas todos concordaram que esses termos não estão presentes em atas de anos anteriores das reuniões de planejamento da empresa.
A repetição, no 4º trimestre de 2022, de um resultado negativo, como o registrado no terceiro trimestre do ano passado, poderia inverter essas expectativas e expor a situação da empresa. Rial foi ainda questionado na CPI ainda sobre por que ele, que foi presidente executivo do Santander, não consultou o sistema do Banco Central para checar o real endividamento da companhia. Ele respondeu ter sido enganado pela confiabilidade da empresa.
“Dos 16 analistas que cobriam a empresa, 10 recomendavam compra. As agências de risco atribuíam alto rating à companhia. A empresa tinha muita confiança do mercado. Fui vítima como muitos outros”, disse. Os investigadores agora pretendem saber o papel dos envolvidos – bancos, auditores, executivos e controladores da Americanas – na história e se agiram com a diligência devida em uma fraude que – essa é a estimativa ouvida duas vezes pela coluna – estava ocorrendo havia sete ou oito anos.
Marcelo Godoy/Estadão Conteúdo